Portaria MF n.º 1.430/2025 e os reflexos na correção dos depósitos judiciais federais pelo IPCA
A Portaria Ministério da Fazenda (MF) n.º 1.430/2025, publicada no dia 04 de julho de 2025, visa a regulamentar a alteração legislativa introduzida pela Lei n.º 14.973/2024, que promoveu significativas mudanças no regime jurídico dos depósitos judiciais. Em seu art. 49, inc. IV, a referida lei revogou expressamente a Lei n.º 9.703/98, que até então disciplinava os depósitos judiciais e extrajudiciais de tributos administrados pela Secretaria da Receita Federal do Brasil (SRFB), prevendo que sua remuneração deveria observar os juros equivalentes à Taxa Selic, conforme também disposto no art. 39, §4º, da Lei n.º 9.250/1995.
Nesse contexto, a Portaria MF n.º 1.430/2025 trouxe uma relevante alteração na sistemática de atualização dos depósitos realizados em processos administrativos ou judiciais em que figure como parte a União, seus órgãos, fundos, autarquias, fundações ou empresas estatais federais dependentes.
A norma estabelece que, a partir de sua vigência, prevista para o dia 1º de janeiro de 2026, os valores depositados judicial ou administrativamente em discussões federais passarão a ser corrigidos exclusivamente pela variação do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), em substituição à Taxa Selic, até então aplicada nesses casos.
Cumpre ressaltar que a portaria prevê, em seu art. 10, que os depósitos realizados antes da entrada em vigor da nova regra permanecerão sujeitos à atualização pela Selic, nos termos do §4º, do art. 39 da Lei nº 9.250/1995. Assim, a partir de 1º de janeiro de 2026, coexistirão dois índices: (i) Selic, remunerando os depósitos já realizados; (ii) IPCA, corrigindo os depósitos realizados após essa data.
A alteração legislativa, justificada na pretensa necessidade de uniformização do critério de atualização com o índice oficial da inflação, conforme exposição de motivos, traz repercussões não só econômicas, mas também jurídicas, inclusive no âmbito tributário. Isso porque, historicamente, os depósitos judiciais, em âmbito federal, realizados pelos contribuintes para suspender a exigibilidade do crédito tributário, nos termos do art. 151, inc. II, do CTN, em regra eram remunerados pela Taxa Selic.
A remuneração dos depósitos judiciais federais pela Taxa Selic consolidou-se na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ)[1] e nos atos normativos da Secretaria da Receita Federal do Brasil (SRFB), refletindo o entendimento de que a referida Taxa, por agregar em seu cálculo tanto a atualização monetária quanto os juros remuneratórios, representa a forma mais adequada de manter o valor real do montante indisponibilizado pelo contribuinte durante a tramitação do processo. Afinal, ao promover o depósito judicial, o contribuinte renuncia ao uso de valores que poderiam ser reinvestidos em sua atividade empresarial, tal como se tivesse realizado o pagamento exação discutida, para que, somente após o desfecho da ação, possa reavê-los, em caso de êxito.
A aplicação da Selic na remuneração dos depósitos não visava apenas a tentar assegurar a eventual e possível equivalência econômica entre depósito e pagamento, como também respeitava o princípio da isonomia. Isso porque, se, ao final da demanda, sendo o Fisco o vencedor, recebe o seu crédito integralmente corrigido; se, por outro lado, o contribuinte se sagrava vitorioso, tem o direito ao levantamento dos valores atualizados da mesma forma.
Com a edição da Portaria MF n.º 1.430/2025, todavia, o equilíbrio na relação Fisco-contribuinte é quebrado, já que a nova norma passou a prever que os depósitos serão corrigidos apenas pela variação do IPCA, no momento do levantamento. Embora o referido índice reflita a inflação oficial, não remunera o capital nem compensa as perdas associadas à indisponibilidade do valor pelo contribuinte, tal como a Selic – que visa à recomposição patrimonial, conforme reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento do Tema n.º 962, sob a sistemática de repercussão geral.
A título demonstrativo, o IPCA acumulou alta de 0,25% (vinte e cinco centésimos) em junho de 2025, e, nos últimos 12 meses, a inflação acumulada é de 5,35% (cinco inteiros e trinta e cinco centésimos por cento). Já a Taxa Selic, hoje, se apresenta em 15% (quinze por cento) ao ano. A divergência entre os índices – de aproximadamente 10% (dez por cento) ao ano – é substancial, sobretudo considerando um contexto de morosidade processual, em que os depósitos poderão permanecer indisponíveis por anos. Ao final da demanda, ainda que seja reconhecido que a cobrança é indevida, o contribuinte terá suportado, em termos reais, uma perda patrimonial relevante decorrente exclusivamente do índice de atualização dos valores.
Dito de outra forma, mesmo se sagrando vencedor da ação, o contribuinte será restituído com valores significativamente defasados em comparação ao que teria direito se tivesse realizado o pagamento do tributo e posteriormente buscado sua restituição com base na Selic, nos termos do art. 39, §4º, da Lei n.º 9.250/95. Esse fato pode induzir contribuintes a não mais depositar os valores controversos, optando por promover o pagamento diretamente ao Fisco, diante da possibilidade de recuperação do montante acrescido da Selic, o que não ocorrerá no depósito judicial.
Isso porque, apesar da alteração do índice de atualização dos depósitos judiciais, os créditos tributários federais e as repetições de indébito continuam sendo atualizados pela taxa Selic. No entanto, nos termos do art. 8º, § 1º, da Portaria MF nº 1.430/2025, o confronto entre o valor depositado e o valor do atualizado do crédito tributário será realizado no momento do depósito, e não por ocasião de sua conversão em renda. Essa previsão tranquiliza os contribuintes e reforça que a atualização dos depósitos pelo IPCA não resultará na necessidade de posterior complementação em caso de conversão em renda em favor da União Federal.
A despeito desse cenário, entendemos que a alteração legislativa, na forma regulamentada pela Portaria MF n.º 1.430/2025 significa, em última análise, afronta ao princípio da isonomia. Isso porque, ainda que se trate de depósito judicial, a posterior conversão em renda dos valores à União gera como efeito econômico a quitação do crédito tributário, nos termos do art. 156, inc. I, do CTN. Dessa forma, tal como ocorre na restituição do indébito, a devolução dos valores ao contribuinte deveria se dar por meio da Selic.
De outro lado, entendemos que a nova sistemática colide com o direito fundamental de propriedade, previsto no art. 5º, inc XXII, da Constituição. O contribuinte, ao realizar o depósito judicial, é privado do uso do seu capital por um período incerto, muitas vezes prologando, sendo impedido de investi-lo em aplicações que lhe garantiriam rentabilidade superior à variação do IPCA. A nova sistemática ignora essas particularidades, conferindo ao depósito judicial apenas a recomposição da inflação, o que não reflete a perda efetiva decorrente da indisponibilidade dos recursos.
Há, ainda, uma violação à garantia do acesso à justiça e ao devido processo legal. Ao tornar o depósito judicial uma alternativa financeiramente desvantajosa, especialmente em comparação a outras garantias (como, por exemplo, o seguro garantia ou fiança bancária), a nova sistemática atua, na prática, como um mecanismo desestimulador da judicialização de demandas que buscam a discussão legítima de créditos constituídos em desfavor dos contribuintes.
Além disso, pode-se entender que a medida seria injustificável sob a ótica da lógica da suspensão da exigibilidade. O Superior Tribunal de Justiça (STJ), no julgamento do Tema n.º 677/STJ, passou a reconhecer que a responsabilidade pelos consectários de mora recai sobre o devedor até a efetiva entrega do valor ao credor. No entanto, essa lógica compromete diretamente o disposto nos arts. 151, inc. II e 156, inc. VI, ambos do CTN; e, sobretudo o art. 9º, § 4º, da Lei n.º 6.830/1980 (Lei de Execuções Fiscais), o qual dispõe que “somente o depósito em dinheiro, na forma do artigo 32, faz cessar a responsabilidade pela atualização monetária e juros de mora”.
Em razão disso, a Corte Superior vem afastando a inaplicabilidade do Tema n.º 677/STJ às Execuções Fiscais, sobretudo porque a referida tese foi fixada com base em relações privadas, sem considerar normas específicas do Código Tributário Nacional e da Lei de Execuções Fiscais. Além disso, as recentes decisões do Superior Tribunal de Justiça vêm considerando que os depósitos judiciais realizados em âmbito tributário federal, desde a vigência da Lei n.º 9.703/1998, são repassados à Caixa Econômica Federal para a Conta Única do Tesouro Nacional (art. 2º), o que demonstra a imediata disponibilidade dos valores ao Fisco.
Logo, verifica-se que, na Execução Fiscal, tem-se situação peculiar, diferente daquela fixada no âmbito do Tema n.º 677/STJ, no sentido de que, cercando-se o Fisco de maiores vantagens do que o credor comum, deve observar as restrições impostas pelos arts. 151, II, e 156, VI, do CTN e pelo art. 9º, § 4º, da Lei n. 6.830/1980.
Então, reconhecendo-se que o depósito judicial afasta a mora, os efeitos patrimoniais desse instituto (art. 151, inc. II, do CTN) são equiparados ao do próprio pagamento do crédito tributário (art. 156, inc. I, do CTN), de modo que não haveria justificativa para que o eventual levantamento dos valores depositados seja corrigido por índice inferior ao aplicado ao pagamento realizado diretamente ao Fisco.
Nesse sentido, já reconheceu o Ministro Luiz Fux no julgamento do Agravo Regimental no Agravo de n.º 799.539/SP para considerar que “no momento em que o contribuinte opta por depositar os valores controvertidos até decisão que declare a legalidade ou ilegalidade da exação, presta uma garantia […] e ao mesmo tempo, acautela os interesses do Fisco na medida em que a conversão dos valores em renda, in casu, da União, é modalidade de extinção do crédito tributário equivalente ao pagamento, nos termos do art. 156 do CTN”. Daí se extrai a incoerência da norma prevista na Portaria Ministério da Fazenda (MF) n.º 1.430/2025: se o depósito, ao final da demanda, em caso de julgamento desfavorável ao contribuinte, produz os mesmos efeitos econômicos do pagamento direto – inclusive quanto à atualização monetária, o seu levantamento também deveria ser corrigido pelo índice aplicável ao pagamento indevido, qual seja, a Selic.
Também merece destaque o fato de que o Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento do Recurso Extraordinário de n.º 870.947/SE, afetado à sistemática de repercussão geral (Tema 810/STF), fixou a tese de que os juros moratórios aplicáveis às condenações da Fazenda Pública devem observar o mesmo critério utilizado pela União para atualizar seus créditos tributários, sob pena de violação ao princípio da isonomia. A razão de decidir do acórdão é clara ao afirmar que o Fisco não pode ser beneficiado por índices de atualização mais vantajosos quando credor e, simultaneamente, restituir por índices menos vantajosos quando devedor. Novamente, ainda que o depósito e o pagamento sejam institutos distintos, a lógica financeira de ambos e do julgado é a mesma, considerando os efeitos econômicos de desembolso de caixa do contribuinte.
Diante desse contexto, o que se verifica é o de que o depósito judicial, que sempre figurou como instrumento de proteção do contribuinte e do próprio crédito tributário, deixa de ser vantajoso sob a ótica econômica com essa alteração normativa e, em última análise, desvirtua a sua função como meio legítimo e proporcional de garantir o juízo.
Lado outro, é importante destacar que a própria Portaria MF n.º 1.430/2025, em seu art. 13, prevê que a nova sistemática se aplicará apenas aos depósitos realizados a partir de sua entrada em vigor, ou seja, a partir de 1º de janeiro de 2026. Essa delimitação temporal é relevante, pois confere aos contribuintes que ainda não constituíram garantia a oportunidade de avaliar estrategicamente a melhor forma de assegurar a discussão tributária, ponderando os custos e riscos envolvidos.
Nesse cenário, é recomendável que, a partir de 1º de janeiro de 2026 (data de vigência da Portaria), os contribuintes considerem alternativas como o pagamento direto do tributo, a fiança bancária ou o seguro garantia judicial para viabilizar discussões sobre a legitimidade do crédito tributário, sem obstar a regularidade fiscal. Quanto à fiança bancária e apólice de seguro garantia, ainda que não suspendam a exigibilidade do crédito tributário, são juridicamente aptas a preservar o capital. É importante registrar que, para os casos em que o depósito judicial já foi realizado, a Portaria não estabelece alterações para a sua remuneração.
Por fim, há ainda que se ponderar que a substituição da Taxa Selic pelo IPCA também reacende discussões sobre a tributação da correção monetária incidente sobre os depósitos judiciais eventualmente levantados ao final da ação. A título de recordação, ao julgar o Tema n.º 1.237, o STJ, entendeu-se que “os valores de juros, calculados pela Taxa Selic ou outros índices, recebidos em face de repetição de indébito tributário, na devolução de depósitos judiciais ou nos pagamentos efetuados decorrentes de obrigações contratuais em atraso, por se caracterizarem como receita bruta operacional da pessoa jurídica, estão na base de cálculo das contribuições ao PIS/PASEP e COFINS cumulativas e, por integrarem o conceito amplo de Receita Bruta, na base de cálculo das contribuições ao PIS/PASEP e COFINS não cumulativas”.
Além disso, ao julgar o Tema n.º 504, a Corte Superior decidiu que “os juros incidentes na devolução dos depósitos judiciais possuem natureza remuneratória e não escapam à tributação pelo IRPJ e pela CSLL.”. Segundo o voto do Ministro Relator Mauro Campbell, ao analisar a natureza jurídica dos juros nos casos de depósitos judiciais, entendeu-se que os juros decorrem de depósito voluntário efetuado pelo contribuinte em instituição financeira, submetendo-se à remuneração legalmente estabelecida e possuindo, portanto, natureza indenizatória.
Ocorre que, em maio de 2025, a Confederação Nacional de Saúde (CNS) levou ao STF uma nova provocação sobre o tema, por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n.º 7.813. Com isso, o debate sobre a natureza jurídica dos valores restituídos ao contribuinte por meio de depósitos judiciais voltou à discussão, especialmente no que diz respeito à incidência do IRPJ e a CSLL sobre a parcela referente à correção pela Selic.
Embora o STF tenha afirmado anteriormente que a discussão teria natureza infraconstitucional, a nova ação pode abrir espaço para a perspectiva constitucional. Isso porque, com a recente substituição da Taxa Selic pelo IPCA, os contribuintes poderão discutir que, se os valores levantados a título de depósito judicial refletem apenas a reposição da inflação (IPCA), então não haveria razão para tributá-los como se fossem acréscimo patrimonial. Isto é, trata-se de simples recomposição do poder de compra de um valor que permaneceu indisponível durante o processo judicial.
Entendemos, portanto, que a alteração promovida pela Portaria MF n.º 1.430/2025, ainda que amparada pela Lei n.º 14.973/2024, será objeto de intensos debates judiciais, com potenciais de repercussões práticas relevantes. Por essa razão, recomenda-se a atuação preventiva e estratégica dos contribuintes, especialmente quanto à gestão de litígios fiscais, seja por meio do ajuizamento de ações específicas para questionar o novo índice, seja por meio da alteração da estratégia para os processos afetados por essa modificação do índice de correção.
A equipe tributária do William Freire Advogados Associados está à disposição para auxiliar no tema.
Rodrigo Pires Brenda Aguiar Kauê Gomes
[1] STJ – REsp: 1138695 SC 2009/0086194-3, Relator.: Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, Data de Julgamento: 22/05/2013, S1 – PRIMEIRA SEÇÃO, Data de Publicação: DJe 31/05/2013 RDTAPET vol. 38 p . 223

