1. Introdução
A Primeira Seção do STJ decidiu, sob o rito dos recursos repetitivos (Tema 986), que a Tarifa de Uso do Sistema de Distribuição (TUSD) e a Tarifa de Uso do Sistema de Transmissão (TUST) devem ser incluídas na base de cálculo do ICMS incidente sobre a energia elétrica. Esse entendimento é aplicável tanto aos consumidores submetidos ao mercado livre quanto ao cativo.
A Primeira Seção, seguindo a nova orientação que vem sendo adotada pelo STJ, também determinou a modulação dos efeitos da decisão, estabelecendo como marco o julgamento do REsp 1.163.020, que foi feito pela Primeira Turma do STJ. Isso porque, até aquele momento, a orientação das duas turmas de direito público do STJ era favorável aos contribuintes.
Assim, fixou-se que, até o dia 27.03.2017 – data da publicação do acórdão do julgamento feito pela Primeira Turma –, estão mantidos os efeitos das decisões liminares favoráveis que tenham beneficiado os consumidores de energia que, sem depósito judicial, tenham recolhido o ICMS sem a inclusão da TUSD e TUST na base de cálculo do imposto estadual.
A modulação não beneficia os seguintes contribuintes:
- Sem ação ajuizada;
- Com ação ajuizada:
a. Na qual inexista tutela ou tutela revogada;
b. Na qual se tenha feito depósitos judiciais;
c. Na qual a tutela tenha sido concedida após 27 de março de 2017.
Para as ações transitadas em julgado, a Primeira Seção determinou que essa análise deve ser feita de forma casuística e a depender dos prazos para eventual Ação Rescisória.
Além disso, mesmo para as ações beneficiadas pela modulação, esses contribuintes deverão passar a incluir as tarifas na base de cálculo do ICMS a partir da data da publicação do acórdão do Tema Repetitivo 986, o que ainda não ocorreu.
Diante da pacificação desfavorável do tema em âmbito infraconstitucional, é importante que os contribuintes avaliem os próximos passos relacionados à tese, conforme breves comentários abaixo.
2. Vinculação do tema à ADI n. 7195 e a densidade constitucional da matéria
Historicamente, consolidou-se o entendimento jurisprudencial de que a matéria relativa à inclusão da TUST e TUSD na base de cálculo do ICMS incidente sobre a energia elétrica seria infraconstitucional, de modo que a eventual ofensa à Constituição, acaso existisse, seria meramente reflexa (RE 1030939 AgR).
Esse entendimento conduziria à conclusão de que o julgamento do Tema 986 por parte do STJ pacificaria a matéria.
Contudo, é importante observar que o Min. Luiz Fux, ao julgar a Medida Cautelar pretendida na ADI n. 7195, expressamente se manifestou sobre o tema, confirmando que o assunto ainda precisará ser julgado pelo STF, dada a sua densidade constitucional.
Para tanto, será necessário refazer brevemente o contexto histórico do assunto.
Em junho de 2022 foi promulgada a Lei Complementar n. 194/2022, que alterou o art. 3º da Lei Kandir, para incluir o inciso X ao art. 3º, que passou a ter a seguinte redação:
“Art. 2º A Lei Complementar nº 87, de 13 de setembro de 1996 (Lei Kandir),
passa a vigorar com as seguintes alterações:Art. 3º O imposto não incide sobre: (…)
X – serviços de transmissão e distribuição e encargos
setoriais vinculados às operações com energia elétrica.”
Tal previsão teve o condão de solucionar a discussão jurisprudencial a respeito da exclusão das tarifas de transmissão e distribuição da base de cálculo do imposto estadual incidente sobre a energia elétrica. Isto é, de forma prudente e elogiável, o Poder Legislativo decidiu encerrar a controvérsia que se arrastava por anos no Poder Judiciário, gerando enorme insegurança jurídica, ao escolher, entre as interpretações possíveis, aquela que lhe pareceu mais harmônica com o ordenamento jurídico (interpretação autêntica): a não incidência do ICMS sobre TUSD e TUST.
Ocorre que a Lei Complementar n. 194/2022 foi submetida a controle de constitucionalidade por meio da ADI n. 7195, proposta por diversos governadores, insatisfeitos com a ingerência do Congresso Nacional em assunto, segundo eles, relativo à tributação estadual. Diante do imediato impacto ao erário, foi deduzido pedido de Medida Cautelar, para suspender os efeitos da alteração normativa até que o STF julgasse a matéria definitivamente.
Ao analisar a Medida Cautelar, o Min. Relator Luiz Fux expressamente se manifestou sobre a (in)constitucionalidade da lei complementar, ao tratar da materialidade do imposto e da delimitação constitucional a respeito do termo operação para fins de incidência do ICMS. O trecho abaixo não deixa dúvidas:
“Forçoso reconhecer, desse modo, que a fumaça de bom direito mostra-se caracterizada, vez que não se afigura legítima a definição dos parâmetros para a incidência do ICMS em norma editada pelo Legislativo federal, ainda que veiculada por meio de lei complementar. Outrossim, sob o aspecto material, o uso do termo “operações” remete não apenas ao consumo efetivo, mas a toda a infraestrutura utilizada para que este consumo venha a se realizar, isto é, o sistema de transmissão da energia.” – (sem grifos)
Essa decisão foi referendada pelo Plenário do STF.
Em outras palavras, embora a Suprema Corte tenha dito, em outras oportunidades, que a matéria da tributação de TUSD e TUST pelo ICMS seria infraconstitucional, posteriormente isso foi superado. Entendemos, portanto, que a pacificação do tema passará, necessariamente, pelo posicionamento do STF a respeito da materialidade do imposto e se ela admite a inclusão de TUSD e TUST em sua base de cálculo. Isso será feito no julgamento da ADI n. 7195.
3. Efeitos retroativos do art. 2º da Lei Complementar n. 194/2022
Como visto, para reforçar a segurança jurídica quanto à controvérsia que se arrastava no Poder Judiciário, o Poder Legislativo manifestou a sua interpretação autêntica sobre a questão: o ICMS não pode incidir sobre TUSD e TUST.
Ou seja, o art. 2º da Lei Complementar n. 194/2022 tão somente positivou interpretações já acolhidas em diversos julgados do Poder Judiciário, inclusive e especialmente do próprio STJ. Isso confere a esse dispositivo natureza meramente interpretativa, aplicável por isso a fatos ou atos pretéritos, nos termos do art. 106, I, do CTN:
“Art. 106. A lei aplica-se a ato ou fato pretérito:
I – em qualquer caso, quando seja expressamente interpretativa, excluída
a aplicação de penalidade à infração dos dispositivos interpretados;” –
(sem grifos)
A hipótese prevista no art. 106, I, do CTN demonstra a louvável posição de que, frente à regra geral da irretroatividade, determinada norma jurídica que tenha meramente (i) reproduzido interpretação acertada de norma anterior ou (ii) selecionado interpretação possível de norma anterior, não inova propriamente no ordenamento jurídico, razão pela qual se admite a produção de efeitos para o passado. Conforme Schoueri[1], “o escopo da lei não é propriamente regular uma situação pretérita, mas dar um sentido a um texto de lei anteriormente vigente.”
A oscilação da jurisprudência do STJ em relação à incidência de ICMS sobre TUSD e TUST é prova de que o art. 2º da Lei Complementar n. 194/2022, neste ponto, apenas introduziu regra já passível de ser extraída do ordenamento jurídico vigente. Isso significa que a lei não regulou situação pretérita, e sim escolheu, das interpretações possíveis da Constituição e da Lei Kandir, aquela que deve prevalecer. Trata-se de conferir maior segurança jurídica ao sistema e isso é plenamente compatível com o escopo de aplicação do art. 106, I, do CTN, conforme demonstra Schoueri[2]:
“Finalmente, cabe cogitar a hipótese em que um texto oferece várias interpretações e a lei interpretativa escolhe uma delas.
Afinal, já se viu […] que a interpretação/aplicação envolve um processo de escolha por parte do aplicador da lei. Entre as várias soluções certas, todas elas dentro do escopo da lei, o intérprete/aplicador escolhe aquela que lhe parece a melhor.
Se assim é, a lei interpretativa pode fazer as vezes de reduzir o espaço antes deixado para o intérprete/aplicador. É o caso em que se diz que o novo texto integra a própria norma interpretada, que antes parecia obscura e duvidosa, sendo apenas esclarecida pela lei interpretativa. Se havia várias interpretações certas para um texto, pode a lei interpretativa decidir que uma ou outra solução não seja aplicável (ou, o que dá no mesmo, escolher aquelas que são aplicáveis)”. – (grifamos).
Se é assim, o art. 2º da Lei Complementar n. 194/2022 é “expressamente interpretativo”, produzindo efeitos em relação ao passado de forma aumentar a segurança jurídica do sistema, reforçando a sua calculabilidade, nos termos do art. 106, I, do CTN.
O seu caráter “expressamente” interpretativo decorre de dois fatores. Em primeiro lugar, do próprio conteúdo das normas, que evidenciam meras interpretações já fartamente verificadas na jurisprudência do STJ. É que essa norma possui natureza simplesmente expletiva.
A norma expletiva é aquela que não precisava constar no sistema jurídico, porque é dele decorrente. Consubstancia, portanto, o objetivo do legislador de ressaltar determinado aspecto já existente no ordenamento. Como exemplo, o Min. Gilmar Mendes referiu-se ao art. 5º da EC 41/2003 como norma expletiva, porque apenas enfatiza um limite já imposto pelo art. 37, XI, da CF (vide ADI 3133/DF, DJ 21.9.2011).
Sendo expletiva, a norma – ao menos no momento da sua edição, em que o STJ ainda não havia mudado sua orientação contrariamente aos contribuintes – era desnecessária.
E não há que se falar em aplicação da jurisprudência do STF no RE nº 556.621 ou do STJ quanto à Lei Complementar nº 118/2005, uma vez que se parte aqui de premissa distinta: para que a norma dita interpretativa não produza efeitos retroativos é preciso um estágio de pacificação jurisprudencial tão cristalizado que a regra de fato, no intento de interpretar, acabe inovando no ordenamento. Essa pacificação jurisprudencial, à época da edição do art. 2º da Lei Complementar n. 194/2022, se existisse, era favorável aos contribuintes e condizente com o conteúdo dessa norma. Havia tão somente um julgado desfavorável no STJ, que se reputou como isolado, até a recente mudança de jurisprudência.
Quanto à estratégia processual a ser adotada pelos contribuintes que atualmente já ajuizaram as suas respectivas ações, entendemos que existem dois cenários:
1. Para aqueles contribuintes que ajuizaram suas ações antes da Lei Complementar n. 194/2022, entendemos que é possível trazer o argumento relativo a essa alteração legislativa, que produz efeitos retroativos, neste momento, conforme autorização constante do art. 493 do CPC/2015. Referido dispositivo diz que se “depois da propositura da ação, algum fato constitutivo, modificativo ou extintivo do direito influir no julgamento do mérito, caberá ao juiz tomá-lo em consideração, de ofício ou a requerimento da parte, no momento de proferir a decisão”.
Não há dúvidas de que a referida Lei Complementar influi diretamente no julgamento do mérito e que constitui fato novo e superveniente ao ajuizamento da ação, o que justifica o seu apontamento no processo nesta fase.
2. Aos contribuintes que já apontaram a referida lei complementar em seus respectivos processos, entendemos que não há causa para desistência da ação neste momento.
Diante disso, o julgamento feito pela Primeira Seção do STJ não encerra a discussão, pois caberá ao STF analisar a materialidade do ICMS e a constitucionalidade do art. 2º da LC n. 194/2022 conforme fundamentos deduzidos na ADI n. 7195.
Ademais, o próprio STJ poderá analisar o caráter interpretativo e retroativo do art. 2º da Lei Complementar n. 194/2022, de forma a resolver a sua aplicabilidade ao passado, caso sua validade seja mantida pelo STF.
4. Inconstitucionalidade do critério definido pelo STJ na modulação dos efeitos
Superado o julgamento do mérito feito pelo STJ, entendemos também que o critério definido para a modulação dos efeitos padece de vícios de inconstitucionalidade, por violação à isonomia e à livre concorrência.
Isso significa que, para além da discussão constitucional quanto ao mérito, há também discussão constitucional quanto ao critério da modulação.
Conforme relatado, o STJ firmou seu entendimento no sentido de que estariam mantidos os efeitos das decisões liminares proferidas antes de março de 2017 e atualmente vigentes, para aqueles contribuintes que fizeram o recolhimento do imposto sem incluir as referidas tarifas na sua base de cálculo.
Ocorre que esse critério é anti-isonômico, pois coloca contribuintes que tomaram providências idênticas em situação de desigualdade, em razão da mera loteria jurisdicional. A modulação dos efeitos, tal qual estruturada e amplamente adotada pelo STF, está pautada na noção de atos praticados pelo contribuinte antes da reversão do entendimento jurisprudencial, prestigiando aqueles jurisdicionados que provocaram o Poder Judiciário antes de terem a certeza do seu direito por meio do julgamento feito sob a sistemática dos recursos repetitivos.
A nova sistemática inaugurada pelo STJ quebra essa ordem, ao beneficiar aqueles contribuintes que, por loteria jurisdicional, foram beneficiados por decisões liminares simplesmente em razão de seu processo ter sido distribuído a magistrado que concorda com a tese proposta, enquanto outro contribuinte não obteve o mesmo resultado por convicções próprias de outro magistrado.
Além disso, essa sistemática de modulação cria um potencial efeito pernicioso na tramitação dos processos de natureza tributária. É provável que o Fisco (União, Estados e Municípios) passe a alegar o perigo da demora inverso, sob o fundamento de que a eventual liminar deferida em processo tributário pode representar a perda definitiva do recurso, ainda que o caso venha a ser julgado em sentido desfavorável ao contribuinte no futuro, em razão dessa modalidade de modulação. Não é absurdo concluir que esse argumento poderá representar a redução expressiva do deferimento de pedidos liminares favoráveis aos contribuintes, sob o receio dos magistrados dos efeitos das suas decisões no futuro. Em outras palavras, se as liminares forem indeferidas, a perda de arrecadação com a modulação será ínfima.
Entendemos que há, ainda, violação à livre iniciativa. Basta imaginar a hipótese em que dois concorrentes ajuízam duas ações idênticas e no mesmo dia, mas o primeiro teve o pedido liminar deferido e o outro não. Veja-se que o “fator acaso” foi o único juridicamente relevante para definir a sorte de cada um deles na sua subsunção à modulação definida pelo STJ.
O critério de modulação definido pelo STJ ofende, inclusive, a orientação firmada pelo STF nos temas 881 e 885 da repercussão geral. Naquela oportunidade, decidiu-se pela possibilidade da relativização da coisa julgada nas relações tributárias de trato sucessivo. Um dos argumentos sustentados pelos Ministros foi, justamente, a violação à livre concorrência que aquela situação poderia trazer, colocando dois concorrentes que estão em igual situação em manifesta desigualdade perante a legislação tributária.
É o que entendemos que ocorre no presente caso, pois o STJ estabeleceu um critério dotado de alto grau de aleatoriedade, anti-isonômico e que viola a livre concorrência. Além disso, tal sistemática tem o condão de desestimular intensamente a concessão de pedidos liminares futuros em outras teses que ainda serão submetidas à sistemática dos recursos repetitivos.
Por essa razão, entendemos que o critério definido deverá ser submetido ao crivo do STF, diante da sua inconstitucionalidade.
5. Novo contencioso relacionado à inclusão de TUSD e TUST na base de cálculo do ICMS
Também é importante observar que o julgamento do Tema 986 dos recursos repetitivos intensifica a necessidade de os contribuintes avaliarem o novo contencioso relacionado à exclusão das tarifas de transmissão e distribuição da base de cálculo do imposto estadual. Fizemos o alerta ao mercado em março de 2023[3] e o assunto agora se torna ainda mais relevante.
Alguns Estados, cite-se Minas Gerais, Espírito Santo e Santa Catarina, por exemplo, com o advento da Lei Complementar n. 194/2022, editaram Decretos que determinaram a exclusão da TUST e TUSD da base de cálculo do imposto estadual.
Ocorre que, em 09.02.2023, o Min. Luiz Fux suspendeu os efeitos do art. 3º, X, da Lei Kandir, ao deferir a medida cautelar na ADI 7.195, confirmada pelo Pleno do STF. Ato seguinte, os Estados revogaram os Decretos mediante novos Decretos. Logo, passou-se a exigir a inclusão desses valores na base de cálculo do ICMS por mero ato infralegal.
Os Estados que adotaram essa prática majoraram a base de cálculo do imposto (i) de forma retroativa, (ii) no mesmo exercício financeiro e (iii) por meio de ato infralegal. Aqui residem os vícios.
O principal aqui é a violação à regra da legalidade. O art. 150, I, da Constituição, dispõe que é defeso aos Estados aumentar tributo sem lei que o estabeleça. Nesse caso, os Estados promoveram o aumento do ICMS por meio de Decreto, o que viola a regra expressa na Constituição.
A jurisprudência do STF igualmente respalda essa pretensão:
“EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. TRIBUTÁRIO. IMPOSTO SOBRE CIRCULAÇÃO DE MERCADORIAS E SERVIÇOS – ICMS. MARGEM DE VALOR AGREGADO – MVA. ALTERAÇÃO NA BASE DE CÁLCULO POR DECRETO ESTADUAL. IMPOSSIBILIDADE. MAJORAÇÃO INDIRETA DE TRIBUTO. OFENSA AOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA LEGALIDADE TRIBUTÁRIA E DA ANTERIORIDADE NONAGESIMAL. PRECEDENTES. AUSÊNCIA DE OFENSA À CLÁUSULA DE RESERVA DE PLENÁRIO: INCONSTITUCIONALIDADE DECLARADA PELO PLENÁRIO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA. PARÁGRAFO ÚNICO DO ART. 949 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. OBSERVÂNCIA. AGRAVO REGIMENTAL AO QUAL SE NEGA PROVIMENTO.” (RE 1350381 AgR, Relator(a): CÁRMEN LÚCIA, Primeira Turma, julgado em 21/02/2022, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-037 DIVULG 23-02-2022 PUBLIC 24-02-2022) – (sem grifos)
Esses pontos foram enfrentados pelo Pleno do Supremo Tribunal Federal, de forma favorável aos contribuintes, no julgamento do Recurso Ordinário em Mandado de Segurança nº 25.476/DF, cujo Acórdão foi publicado em 26.05.2014:
“TRIBUTO – BASE DE INCIDÊNCIA – PRINCÍPIO DA LEGALIDADE ESTRITA. A fixação da base de incidência da contribuição social alusiva ao frete submete-se ao princípio da legalidade.
CONTRIBUIÇÃO SOCIAL – FRETE – BASE DE INCIDÊNCIA – PORTARIA – MAJORAÇÃO. Surge conflitante com a Carta da República majorar mediante portaria a base de incidência da contribuição social relativa ao frete.
MANDADO DE SEGURANÇA – BALIZAS. No julgamento de processo subjetivo, deve-se observar o pedido formalizado.” (RMS 25476, Relator(a): Min. LUIZ FUX, Relator(a) p/ Acórdão: Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 22/05/2013, DJe-099 DIVULG 23-05-2014 PUBLIC 26-05-2014)
Referido precedente é inteiramente aplicável ao caso analisado neste Memorando, corroborando os argumentos aqui expostos, ante a perfeita similitude dos seus aspectos conceituais. Tal qual ocorre no caso do restabelecimento do ICMS sobre TUSD e TUST por Decreto, o caso analisado pelo STF no RMS nº 25.476/DF consiste no seguinte:
- O art. 22, III, da Lei nº 8.212/1991 estabelece a incidência de Contribuição Previdenciária sobre a remuneração de transportadores autônomos em 20% sobre o valor bruto a eles creditado.
- Adveio o Decreto nº 3.265/1999, que reduziu a base de cálculo do tributo ao patamar de 11,71% da remuneração bruta (ao invés da sua totalidade, que é o previsto em lei).
- Posteriormente, foi editada a Portaria nº 1.135/2001, majorando a base de cálculo da Contribuição para 20% da remuneração bruta (mantendo, ainda, desoneração de 80% em relação ao determinado em lei).
A Confederação Nacional do Transporte – CNT impetrou Mandado de Segurança Coletivo, arguindo a inconstitucionalidade da Portaria nº 1.135/2001, que aumentou o tributo, por violação ao art. 150, I, da CR/88. O pedido formulado na petição inicial consistia no reconhecimento do direito ao recolhimento do tributo sob a base de cálculo fixada pelo Decreto nº 3.265/1999 (11,71% da remuneração bruta).
A inconstitucionalidade foi acolhida pelo STF, com o provimento do Recurso Ordinário da CNT para que fosse assegurado aos contribuintes o direito de recolher o tributo conforme determinado pelo Decreto nº 3.265/1999.
Verifica-se no Acórdão que os Ministros identificaram a existência de duas inconstitucionalidades: do Decreto que reduziu o tributo (violação ao art. 150, § 6º, da CR/88) e da Portaria que o aumentou (violação ao art. 150, I, da CR/88). Contudo, os Ministros decidiram que, por se tratar de Mandado de Segurança (ação individual/subjetiva), deveriam se ater ao pedido formulado na ação, razão pela qual não seria possível declarar incidentalmente a inconstitucionalidade do Decreto que reduziu indevidamente a Contribuição Previdenciária.
Por consequência, tendo sido reconhecida a inconstitucionalidade da majoração do tributo por ato infralegal – ainda que em patamar inferior ao previsto em lei –, não havia alternativa senão prover o Recurso Ordinário, de forma a conceder a segurança pleiteada, cujo efeito prático é assegurar aos contribuintes o recolhimento da Contribuição com base no Decreto que a havia reduzido.
Vale ressaltar que os Ministros expressamente manifestaram que estariam convalidando a inconstitucionalidade do Decreto que reduziu o tributo, sendo esta a única alternativa possível no caso, em face da necessidade de se julgar a lide nos estritos termos do pedido formulado na ação. Os trechos abaixo confirmam o exposto:
Ministro Marco Aurélio
“Ministro, proclamo que muito menos a portaria poderia fixar. Como o pedido é restrito – visa apenas o afastamento da portaria –, provejo o recurso para conceder a ordem tal como pleiteada, ou seja, restabelecendo o cálculo. Paciência!”. […]
Senhora Presidente, adiantando, portanto, o voto – se me permitirem os Colegas -, só para não perder o raciocínio, provejo o recurso para conceder a ordem. Conseqüência prática: restabelecimento dos parâmetros constantes do decreto, que não é questionado no mandado de segurança.” – (grifou-se).
Ministro Ricardo Lewandowski
“Senhora Presidente, também, com todas as vênias, entendo que estamos diante do princípio do tantum devolutum quantum appellatum. Portanto, dou provimento integral ao recurso. Estamos limitados pelo pedido.” – (grifou-se).
Ministro Cezar Peluso
“Não podemos, evidentemente, conceder aqui nada que o prejudique, ou seja, em termos de recurso implicaria reformatio in pejus reconhecer a inconstitucionalidade do decreto para determinar que a contribuição seja calculada com base no valor total das remunerações pagas, e diz a lei, “a qualquer título”, e, portanto, englobando tudo, sem nenhuma distinção, o que elevaria brutalmente a base de cálculo e, por conseguinte, o valor final da contribuição. Ora, nesses limites, reconhecida a ilegalidade da portaria – que não poderia aumentar, como tal, a base de cálculo -, não há o que fazer, com a devida vênia do eminente Relator, senão dar provimento ao recurso, para atender integralmente ao pedido”. – (grifou-se).
Ministro Sepúlveda Pertence
“Estou convencido de que a questão é processual. Não cabe, no mandado de segurança, indagar da legalidade da situação anterior a da impetrante para, eventualmente, piorar-lhe a situação. […]
E o que se estabeleceu é que o mandado de segurança tem que saber se, mantido o status quo anterior ao ato impugnado, há vantagem para o impetrante. E, no caso, é evidente. Por isso, também limito-me a dar provimento ao recurso para conceder a segurança.” – (grifou-se).
Feitas tais considerações, não há dúvida de que o acórdão decorrente do julgamento do RMS nº 25.476/DF se amolda perfeitamente ao caso do restabelecimento do ICMS sobre TUSD e TUST.
Registre-se que, caso de PIS e Cofins sobre receitas financeiras, a legalidade apenas foi atenuada porque o STF afirmou que (i) a lei autorizaria o Executivo a manipular, sob certos limites, as alíquotas das Contribuições e (ii) essa manipulação teria efeito extrafiscal sobre o sistema monetário nacional (RE 1043313 e da ADI 5277, analisando-se o § 2º do art. 27 da Lei nº 10.865/2004). Nada disso ocorre no caso do ICMS ora analisado, uma vez que não há lei que autorize o Executivo a desonerar a base do imposto, tampouco há qualquer razão extrafiscal envolvida.
No mínimo, o art. 150, III, da Constituição, determina que é vedado cobrar tributos em relação a fatos geradores ocorridos antes do início de vigência da lei que os tiver aumentado e no mesmo exercício financeiro em que tiver sido publicado o ato que os aumentou.
Isso significa dizer que a majoração do imposto a partir do alargamento da base de cálculo promovida pelos Estados só poderia produzir efeitos, no mínimo, a partir de 2024. A jurisprudência do STF é farta neste sentido, especificamente para o ICMS:
“AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. TRIBUTÁRIO. ICMS. SUBSTITUIÇÃO TRIBUTÁRIA. MARGEM DE VALOR AGREGADO. MAJORAÇÃO DE CARGA TRIBUTÁRIA. OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DA ANTERIORIDADE TRIBUTÁRIA. 1. Nos termos da jurisprudência da Corte sobre o tema, toda modificação legislativa que, de maneira direta ou indireta, implicar carga tributária maior, há de ter eficácia no ano subsequente àquele no qual veio a ser feita. 2. In casu, os novos percentuais referentes à margem de valor agregado que integra a base de cálculo do ICMS, por acarretarem majoração da carga tributária, devem surtir efeitos apenas no exercício financeiro seguinte à sua publicação. 3. Agravo regimental a que se nega provimento.” (ARE 1387009 AgR, Relator(a): EDSON FACHIN, Segunda Turma, julgado em 14/09/2022, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-213 DIVULG 21-10-2022 PUBLIC 24-10-2022) – (sem grifos)
A exigência de inclusão desses valores, se muito, só poderia ocorrer a partir de 2024. Naturalmente, a anterioridade nonagesimal também é aplicável e representa o argumento subsidiário. A lógica aqui seria muito semelhante às discussões do PIS e Cofins sobre receitas financeiras e sobre o AFRMM.
Dessa forma, a majoração da base de cálculo do ICMS mediante Decreto, como feito por alguns Estados, como, por exemplo, Minas Gerais, Espírito Santo e Santa Catarina, viola as regras da legalidade, anterioridade plena e nonagesimal, bem como o princípio da irretroatividade.
A equipe tributária do William Freire Advogados Associados está à disposição para esclarecer dúvidas sobre o assunto.


[1] SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito Tributário, 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 847.
[2] SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito Tributário, 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 848.
[3] Vide: https://williamfreire.com.br/areas-do-direito/direito-tributario/exclusao-da-tusd-e-tust-na-base-de-calculo-do-icms-em-minas-gerais-novo-capitulo-em-razao-do-decreto-no-48-572-2023/