As Ações Civis Públicas ajuizadas pela União relacionadas à prática de lavra ilegal têm como finalidade a recomposição do patrimônio público supostamente usurpado nessas situações.
Por patrimônio público, leia-se os recursos minerais eventualmente extraídos de forma irregular, seja em razão da ausência de título autorizativo ou por desrespeito aos limites estabelecidos pelo poder concedente.
Apesar de serem ações de grande relevo para o interesse público, no sentido de garantir à União o recebimento da devida contraprestação pela lavra ilegal, o que se vê na prática são pleitos indenizatórios em valores que passam ao largo de qualquer razoabilidade e traduzem-se em verdadeiras pretensões de enriquecimento ilícito.
(a) Pretensão da União e inconsistência da tese
O pedido principal dessas demandas é, no mais das vezes, a condenação do particular que lavrou irregularmente ao pagamento de valores correspondentes ao volume de minério lavrado, multiplicado pelo preço de venda do metro cúbico ou da tonelada do produto. Em outras palavras, a União pretende ser ressarcida com base no faturamento bruto incorrido em determinado período.
O caráter desarrazoado de tal quantificação se dá, em primeiro lugar, pelo fato de que a Lei 7.990/89 instituiu a Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais (CFEM) como única contraprestação devida à União pelo aproveitamento mineral, sendo somente este o benefício econômico a ser auferido pelo Poder Público em decorrência dessa atividade.
Por força constitucional e legal, é vedado à União realizar a atividade de mineração de forma direta, cabendo-lhe apenas o gerenciamento estratégico destes recursos naturais por meio da outorga de consentimentos para que os particulares, de forma exclusiva, possam aproveitar o seu potencial econômico. Não é por outra razão que a Constituição (art. 176) atribuiu ao particular a propriedade exclusiva de todo o produto da lavra decorrente da jazida onerada por seu Direito Minerário.
Consequentemente, o cálculo indenizatório deveria se ater ao valor do minério em seu estado natural, ou seja, sem que tenha havido qualquer beneficiamento ou modificação em suas características, uma vez que este é o limite do bem cuja propriedade foi conferida à União. Qualquer quantificação acima desses parâmetros representaria enriquecimento evidentemente ilícito.
Fato é que, ao pleitear o ressarcimento com base no faturamento bruto obtido pelo particular, a União desconsidera que enorme percentual desses valores está relacionado aos custos produtivos da atividade. Em muitos casos, o lucro
efetivamente obtido pelo empreendedor é pequeno percentual do faturamento bruto decorrente da comercialização do minério. Em última hipótese, a União apenas poderia pleitear o ressarcimento equivalente ao lucro obtido pelo particular com a atividade eventualmente irregular, por representar o “indevidamente auferido” no período.
(b) Análise quantitativa
Essas teses foram detalhadas no artigo Reflexões sobre a recomposição patrimonial da União nas ações civis públicas de usurpação mineral, publicado por nossa equipe na Revista dos Tribunais1.
Todavia, a relevância do assunto merece uma análise, além de qualitativa, quantitativa. Em estudo realizado por nossa equipe2, 103 Ações Civis Públicas nos Tribunais Regionais Federais do país abordaram o tema do critério de quantificação da indenização devida à União.
A distribuição dessas ações, segregadas por Tribunal Regional Federal, pode ser visualizada nos gráficos abaixo:
Apesar da evidente tendência dos Tribunais a acatar o equivocado critério empregado pela União, alguns avanços vêm sendo verificados ao longo dos anos, como por exemplo no âmbito do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, cujos julgamentos mais recentes têm adotado o entendimento de que a “aplicação como valor indenizatório do correspondente ao faturamento total da empresa proveniente da extração irregular do minério mostra-se desproporcional, porquanto desconsideradas todas as despesas referentes à atividade empresarial”3.
Em que pese o Tribunal Regional Federal da 1ª Região ter se posicionado em muitas ocasiões a favor da aplicação da tese do faturamento bruto na quantificação da indenização, o recente julgado de relatoria do Desembargador João
Batista Moreira, proferido na Apelação Cível nº 0003415-47.2011.4.01.3813, representa uma possível mudança de entendimento do Tribunal ao aplicar o critério do lucro como mais adequado no cálculo do ressarcimento devido à União.
Dos julgados globalmente analisados, 48,5% aplicaram a equivocada tese do faturamento bruto no cálculo da indenização pretendida em razão de lavra ilegal. Se excluídos os dados do TRF-4 (Tribunal com mais julgados sobre o assunto, e com mais entendimentos diferentes) esse percentual sobe para 97,2%. Das inúmeras reflexões que podem ser feitas a respeito desses números, duas são inequívocas: (i) ainda há uma tendência equivocada de se valer da via indenizatória para penalizar o minerador, tal como se a conduta irregular não sofresse sanções em outras esferas de responsabilidade; (ii) ainda há longo caminho para se percorrer no que tange à reflexão sobre os critérios mais adequados para quantificação do ressarcimento eventualmente devido nesses casos de lavra ilegal.
Condenar o minerador a devolver o equivalente ao seu faturamento de determinado período não é uma alternativa legalmente autorizada, por não corresponder, em medida alguma, ao eventual dano sofrido pela União, tampouco
representar o que efetivamente foi auferido pelo particular com o desenvolvimento da atividade irregular.
A reversão desse entendimento depende de uma atuação setorial forte, especialmente porque o Superior Tribunal de Justiça ainda não definiu o seu entendimento sobre o assunto. Os casos precisam ser levados com o nível de detalhe
e profundidade que o tema exige, já que uma posição sedimentada do STJ definirá os rumos das inúmeras Ações Civis Públicas sobre o assunto em curso no país.
Belo Horizonte/MG, 07 de janeiro de 2020.
Departamento de Contencioso Estratégico do William Freire Advogados Associados